Café&Chocolate
Os papagaios e os seus ouvintes.
Em 1798, Goya publicava uma série de desenhos a que chamou de «Caprichos» e cujo número 53, «Que Bico de Ouro», tem-me vindo à lembrança. É um desenho cuja ironia é profunda, onde alguns clérigos, de olhos cerrados, escutam com pasmo e aceitação as palavras de um papagaio que certamente apenas conseguia ordenar termos do alto de um púlpito improvisado para o momento. Como se depreende, tem-me vindo à lembrança este desenho pela actualidade que manifesta cerca de trezentos e tal anos depois. A forma como veneramos a classe política e aceitamos deslumbrados o já rotineiro assalto aos nossos direitos, a forma como vivemos as vidas de outros que não existindo parecem papagaios a dizer-nos para que não existência deverá caminhar a nossa própria vida, a forma como trocamos a religiosidade interior e intensa pela propaganda das seitas ou pela superstição e pelo medo, a forma como deixámos que nos digam o que será o amanhã sem a nossa marca.
Para 2004, será imperioso perceber que a luz que vem das palavras está nas mãos dos que as sonharam e só o chão e o corpo testemunharão a sua verdade, alguma vez.
Pompeu Miguel Martins
quinta-feira, março 25, 2004
Vistas de Delft
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Vistas de Delft
Há no ressurgimento do corpo a necessidade de encontrar lugares, sítios mínimos onde se possam guardar os pesados pedaços de nada que carregamos ao longo da existência. Passo pelas cidades e pelos campos e pelas ruas à espera de poder, por instantes breves que sejam, deixar uma marca, perceber uma história, enternecer-me ou simplesmente deixar que o silêncio se encarregue de ser mais alto que as vozes.
Entre 1657 e 1658, o holandês Vermeer pintou «A rua de Delft» e nessa obra consigo deter-me e exilar as minhas vontades, às vezes estranhas, de fugir constantemente para um universo que sendo de outros o recrio como quem cultiva uma doença. Apetece voltar uma série de vezes, ser uma personagem a mais. Apetece esconder qualquer coisa nesse quadro, perguntar por alguém, saber a história pessoal das casas em tijolo, saber o que guardam as suas sombras, o que sabem os dedos das mulheres que as preenchem. Paro na Rua de Delft e habito-a neste tempo estranhamente de abismo. Terei isso para contar, penso eu. Está aí quem mais? pergunto-me. Futuramente saberei que poderei sempre fugir para aqui, para esta rua ou para este quadro ou para estas mulheres. O importante é ter um sítio ou alguém para onde se possa fugir, não é? Que idade me dás? perguntei. Um ninguém me responde que não sabe, que é muito dificíl saber a idade do tempo que passamos a fugir, inventando seres que nos modelam no coração inatingível do que estivemos para ser um dia, numa vida qualquer que não a nossa, certamente.
Pompeu Miguel Martins